Por
Jefferson Rodrigues[1]
O
psicólogo e palestrante nacionalmente conhecido Içami Itiba em sua obra
“Disciplina: limite na medida certa” aborda de modo magistral um problema que a
cada dia tem se proliferado mais e mais entre o homem do século XXI: a ausência
de disciplina. O autor citado, em sua obra, aborda a falta de disciplina na criação
de filhos e aponta para os malefícios que tais ações podem trazer para a
formação de uma personalidade saudável na criança e adolescente[2].
Não obstante, ao observarmos a forma como a sociedade ocidental, nas últimas 5
ou 6 décadas, tem demonizado a imposição de limites, vemos que tais assertivas
do professor Itiba podem ser transportadas para todas as esferas de vivências
hodierna. Criamos uma sociedade que abomina o não, o negar-se, o se abster-se.
É uma sociedade que assume a máxima propagada por um artista popular brasileiro
que morreu de overdose e que dizia em uma de suas canções: “faça o que tu
queres, pois é tudo da lei”.
Infelizmente
a ausência de disciplina, de limites, tem adentrado até na vida cristã. Não são
raros os casos em que encontramos cristãos militando contra todo o tipo de
limites impostos tanto pelas Escrituras, como por convenções sociais e
dogmáticas. “Não queremos regras”, “não queremos ser limitados”, buscamos a
“satisfação completa em Cristo”. Com tais discursos - que beiram o hedonismo - estas
pessoas buscam justificar sua ausência de disciplina com manobras teológicas
que deixariam de cabelo em pé qualquer cristão que tenha nascido nos primeiros
1900 anos da Igreja.
Diante
deste desregramento não faltam aqueles que rejeitam uma das disciplinas
espirituais sempre valorizadas por todos os cristãos, estamos falando do jejum.
Diante desta colocação surgem algumas indagações: Até que ponto a prática do
jejum está alinhada com a manifestação plena da Graça de Deus? Será que devemos
fazer está prática? O que a Bíblia diz sobre isso? Diante destas e outras
questões, tentaremos, a seguir, esclarecer algumas destas indagações, ao tempo
em que convidamos a todos para uma reflexão sobre a importância sumária de se
manter a prática do jejum, assim como outras disciplinas espirituais que nos
façam diminuir ante a majestade de Deus.
I.
O
JEJUM E SUA APLICAÇÃO
Através
de uma rápida busca no dicionário Aurélio online encontramos as seguintes
definições do que seja jejum: 1 - Privação
de comida durante um período. 2 - Privação de toda a espécie de alimento
durante o dia (ou de outro período de tempo) por espírito de penitência. 3 -
Privação; abstenção. Em uma perspectiva teológica podemos definir o jejum como:
“Jejum na Bíblia implica em total abstinência de toda comida por um certo
período[3]”
ou ainda nas palavras de Ed René Kivitz: “Jejum é abstinência de alimento ou
água[...] é uma forma de lembrar nossa consciência de que existe uma realidade
mais importante do que nossa própria sobrevivência[4]”.
Assim, com base em nestes os conceitos percebemos que o jejum trata-se de
privar-se de alimento, e isso pode ser tanto com um caráter religioso como em
razão de outros fatores, seja necessidade, enfermidade ou outros motivos.
A Bíblia nos mostra que o jejum era um hábito entre
povo de Deus, é por isso que o professor R.N. Champlin nos informa que “o
jejum, pois fazia parte importante da adoração judaica e, aparentemente,
continuou assim na Igreja cristã primitiva[5]”.
Encontramos, por exemplo, nas Escrituras hebraicas o verbo “sum” e o substantivo “som” para definir o ato de se abster de
alimento. Já no Novo Testamento encontraremos a substantivo grego “nesteia”, palavra que tem sua raiz
significando “fome”. Diante destas expressões aprendemos que para o Escritor
sacro o ato de jejuar estaria diretamente ligado abstenção de alimento por
determinado período de tempo, bem como este hábito era uma prática amplamente
utilizada pelo povo de Deus.
Tanto no Antigo como Novo Testamento veremos
inúmeros personagens que se abstiveram de alimento com vistas a um propósito
espiritual. Um dos grandes exemplos de abstinência de alimentos no Antigo
Testamento é o caso de Moisés. Na vida deste grande líder dos hebreus veremos
pela primeira vez alguém que se absteve de alimentos com um proposito
espiritual. Segundo o texto bíblico Moisés ficou “40 dias sem comer e nem
beber”(Dt 9.19,18; Ex 34.28), e fez isso por duas vezes! É claro que uma pessoa
em sua condição natural não poderia resistir a tanto tempo sem beber líquidos.
Um ser humano normal suporta no máximo 72 horas sem ingerir líquidos. Contudo,
devemos levar em conta que Moisés estava revestido da Glória de Deus, fazendo o
trabalho de Deus e sustentado pelo próprio Autor da Vida. A magnitude do que houve
no cume do monte foi tão glorioso que a face de Moisés resplandecia quando ele
desceu da presença do Eterno (Ex 34.29,30). A ausência de alimento e água não
seria um grande problema para alguém que estava ante o Eterno Criador.
Já no Novo Testamento veremos um caso similar de
jejum, é o próprio Jesus. Segundo os Escritos de Mateus e Lucas Jesus jejuou
por 40 dias, porém, diferente do que houve com Moisés o texto sacro não informa
que o nosso Senhor ficou sem beber durante este tempo, Mateus, por exemplo nos
diz: “E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome”(Mt
4.2); e Lucas afirma que: “[...] e naqueles dias não comeu coisa alguma; e,
terminando eles, teve fome”(Lc 4.2). Em ambos os textos não vemos referência à
ausência de beber líquidos. Neste ponto, você pode estar se perguntando será
que o jejum de Moisés foi superior ao de Jesus? Não sejamos precipitados em
nossas conclusões. Em primeiro lugar, é preciso observar que Moisés foi
sustentado de forma sobrenatural por Deus. Em contrapartida, no desafio enfrentado
por Jesus no deserto, Ele deveria vencer como homem para nos deixar o exemplo.
O homem natural consegue manter-se vivo por aproximadamente 3 meses sem comer,
porém, não resiste 3 dias sem beber. Assim, é possível que Jesus como homem
tenha bebido algo durante este jejum. Porém, nada disso importa para o teor de
nossa discussão. O que é valido ressaltar é que o Mestre Jesus jejuou.
II.
EXISTE ALGUM MANDAMENTO
PARA QUE JEJUÁSSEMOS NO NOVO TESTAMENTO?
Diante o exemplo que acabamos de apresentar parece óbvio
que Jesus tenha deixado alguma ordenança para a prática do Jejum, afinal, ele jejuou
durante 40 dias! Porém, a resposta não é tão simples assim. Ao analisarmos com
cuidado as páginas do Novo Testamento não encontramos uma afirmação impositiva
para que os cristãos jejuassem. Contudo, veremos que por diversas vezes há a
indicação desta prática como algo benéfico para a vida do Cristão. O próprio
Jesus, quando interrogado sobre o porquê de seus discípulos não estarem
jejuando como os de João Batista, responde que chegaria o dia em que o Noivo
seria tirado e então viria o tempo de jejuar (Mt 9.15). Sim, este tempo é o que
nós vivemos. São tempos em que a presença física de Jesus não está aqui, então,
devemos sim jejuar buscando a proximidade espiritual com o Pai. Ainda de acordo
com as palavras de Jesus, há uma orientação de como deveria ser o procedimento
dos discípulos aos jejuarem, mostrado que tal prática era esperada para aqueles
que seguissem a Cristo, vejamos: “Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto,” (Mateus 6:17). Existem ainda
outros indicativos de jejuns por todo o Novo Testamento, tais como:
1. Nos Evangelhos: veremos o exemplo de uma mulher
chamada Ana, que já em idade avançada não saia do templo, orando e jejuando (Lc
2.37), esperando a manifestação do Salvador de Israel.
2.
No livro histórico de Atos dos Apóstolos, veremos que a Igreja nascente tinha uma rotina de consagração regada a
jejuns e ao tomar decisões sempre o fazia através de jejuns e orações. Vejamos:
a) líderes da igreja em Antioquia jejuavam buscando a adoração ao Senhor (At 13.2); b) Quando decidiram enviar missionários também se utilizaram desta
prática disciplinar (At 13.3); c) Veremos que
além de impor as mãos com jejum sobre os missionários enviados, a Igreja em
Antioquia faziam também sobre os que recebiam autoridade de governo na igreja
local. Assim, para estabelecer os ministros as Escrituras nos dizem que:
“Então Paulo e Barnabé lhes constituíram presbíteros
em cada igreja; e, tendo orado e
jejuado, eles os consagraram aos cuidados do Senhor, em quem haviam crido”
(At 14.23); d) Por fim, o próprio Paulo
jejuou durante 14 dias em sua viagem para Roma (At 27.33)
3.
Por fim, nas epístolas paulinas veremos diversas referências a jejuns praticados
por Paulo (2 Co 6.3-5; 11.23-27).
Diante destas observações temos a convicção que a prática do jejum (sempre acompanhado pela oração) era algo de grande valor para a Igreja. Essa prática, inclusive, será adota pelos cristãos posteriores, como veremos, por exemplo, no documento litúrgico- final do século I ou início do séc. II- chamado Didaquê, que nos mostra que tal prática era comum também na Igreja pós-apostólica.
III.
AFINAL, O JEJUM MUDA OS
DESIGNIOS DE DEUS?
Conscientes que esta prática era algo habitual entre
os cristãos da Igreja apostólica e pós-apostólica podemos nos fazer a pergunta
acima ou ainda outra mais precisa: será que eu mudo a vontade de Deus através
de um jejum? Muitos crentes acreditam sinceramente que sim. Eles fazem tal afirmativa
baseando-se em textos do Antigo Testamento onde parece que Deus mudou seus desígnios
após um jejum de um povo ou uma pessoa. Não obstante parecer uma verdade
inquestionável é preciso atentarmos para uma frase popular sobre o propósito do
jejum: “O jejum não muda a Deus, antes ele muda a nós mesmos”.
Precisamos estar cônscios que o jejum alimentar é o
ato de nos privarmos de algo vital para nossa existência para nos conectar com
nosso Criador, ou nas palavras de Kivitz: “O jejum é um passo em direção a algo
mais importante do que permanecermos vivos[6]”.
É colocar em prática as palavras
proferidas pelo Senhor Jesus “nem só de pão viverá o homem” (Lc 4.4). Durante
este momento de privação alimentar, e acompanhado de um período devocional onde
nos voltamos para o que de fato é prioridade, para aquilo que vai além do
sentido meramente carnal. Assim, com um coração voltado para o Senhor e
dispostos a ouvir a sua vontade, conseguimos entender melhor qual é o centro da
vontade de Deus. E se pedirmos, tendo a convicção que nossas petições estão
dentro da vontade do Pai, é certo que receberemos, pois assim Jesus nos
prometeu (Jo 14.13). Ele nos concede por
Graça e não porque jejuamos.
Diante disso, devemos sempre lembrar que através do
jejum mudamos nosso coração, nossas prioridades e nos aproximamos mais do que é
Eterno e imutável. É importante destacar que não é de grande valor jejuar sem
estarmos buscando a Deus em devoção, pois isso poderá ser simplesmente “passar
fome”. Se em todo caso, você tiver que trabalhar ou fazer algo durante o
período de jejum, comece sempre este período com um devocional e em seguida vá
para seus afazeres, mas sempre com um coração voltado para o Senhor. Finalizo
este ponto afirmando que em minha experiência pessoal, já encerrei algumas
vezes jejuns com um período devocional em um cantinho separado no trabalho ou
até mesmo em uma praça pública. Mas é fundamental que independente do local,
estejamos com o coração voltado para o Senhor.
IV.
COMO DEVE SER O JEJUM NA
PRÁTICA?
Finalizarei este rápido artigo com algumas
orientações práticas de como proceder durante o jejum. Faremos isso nos
baseando tanto nas Escrituras, como na prática cotidiana.
1. Jejum sempre vem
acompanhado de oração e uma atitude devocional. Para iniciarmos estas orientações
é bom deixar claro que não podemos jejuar se não orarmos. Jejum sem oração é
apenas fazer dieta. Precisamos iniciar o jejum, ainda que seja um dia comum de
trabalho, com um período de oração. É preciso nos manter em “espírito de oração”
e voltado para o Senhor, com plena consciência de que esta consagração nos
servirá para nos aproximarmos de Deus. Não obstante o belo caráter espiritual
desta prática, é válido ressaltar um
problema que muitos levantam. Em virtude da dificuldade em conciliar jejum e
devocional, muitos irmãos optam por fazerem esta disciplina espiritual durante
o domingo ou feriado. Contudo, penso eu, que todos os dias são propícios a esta
prática, desde que nos mantenhamos em um sentimento de devoção sempre. Assim,
inicie com oração e encerre o período com oração, não importando o local em que
você esteja.
2.Jejum não é voto. É preciso diferenciar a prática de jejum da
prática bíblica de oferecer um voto ao Senhor. Nas Escrituras quando se fala de
jejum sempre está relacionado com a ausência de alimentos. Contudo, existem
alguns irmãos que defendem que o jejum pode ser feito de outras coisas como
aparelhos celulares, redes sociais, televisão e outros meios similares. Na
verdade, para mim, tais ações são bem vindas, porém, acredito que sejam mais
compatíveis com votos ao Senhor do que com jejum. O jejum em si é a abstenção
de alimentos (vide tópico 1).
4.Quanto tempo deve ser? Neste ponto, é
importante falarmos em relação ao tempo do jejum. Algumas pessoas acreditam que
tal prática só é válida se iniciada no raiar do dia e findada no por do Sol ou
ainda se for de 24 horas. Porém, quando vemos alguns exemplos nas Escrituras
podemos perceber que a rainha Ester, por exemplo, jejuou 3 dias (Et 4.16), já o
Paulo jejuou tanto por 3 dias como por 14 dias (At 9.9; At 27.33). Então, não
há uma especificidade de dias ou horas. O que deve ser lembrado é que o jejum
só pode ser válido se você se sentir jejuando, ou seja, você deve sentir que
está se abstendo daquela refeição. Eu particularmente jejuo de modo total
(falaremos dos tipos a seguir), a partir do raiar do dia até a refeição do
almoço, ou ainda, me abstenho do almoço até o entardecer. Mas isso deve ser
ponderado por cada um, de modo sincero e reverente diante de Deus.
5.Quais são os tipos de
jejuns? Neste ponto é importante observarmos que existem pelo menos 3 tipos de
jejuns: parcial, normal e total. Em
relação ao jejum parcial é aquele praticado por pessoas que tem dificuldades (por
razões médicas) de ficar sem comer durante muito tempo. Neste tipo de Jejum
recomenda-se que a pessoas tire alimentos que lhe causam prazer tais carne,
arroz e outros que para a pessoa é essencial. Temos como exemplo deste tipo de
Jejum o profeta Daniel (Dn 10.2,3).
Em relação ao que chamamos de jejum normal é aquele
em que se admite o consumo de água. Este é o tipo de jejum mais comum nas
Escrituras, inclusive é o que se acredita que Jesus praticou no deserto (Mt
4.2). É recomendado para quem irá passar
muitas horas (talvez 12horas ou um pouco menos), pois a desidratação poderá
trazer sérios danos para a saúde física. Por fim, temos o jejum total. Neste
tipo de jejum a pessoa se abstém tanto de líquidos como de comidas. Este tipo
de prática é recomendada para aqueles que não tem problemas de saúde ou que não
ficarão por longos períodos de consagração, na Bíblia vemos poucos exemplos
explícitos deste tipo de jejum.
6. A recomendação essencial:
não seja hipócrita! Por fim, se estiver jejuando não tenha isso como
mérito pessoal. Esse tipo de jejum foi condenado pelo Senhor Jesus, para piorar
Jesus chamou tais pessoas de hipócritas (Mt 6.16). Não precisamos aparentar que
estamos morrendo ou ficar com aparência abatida para nos mostrarmos mais santos
que outros. O jejum é algo que deve servir para nos aproximar de Deus e nos
tornar mais servos uns dos outros. Então, tome banho, escove os dentes aja
normalmente. E se for indagado por que rejeitou algum alimento não precisa ser
misterioso, apenas diga: obrigado, hoje estou dedicando um tempo especial ao
Senhor. Façamos de modo que o Reino de Deus seja glorificado. Afinal, como diz
o apóstolo Paulo: “façamos tudo para glória de Deus”(1 Co 10.31 b).
Considerações finais.
Diante do exposto vimos que a prática do jejum é
algo bíblico e benéfico para a vida espiritual do cristão. Porém, precisamos
ter em mente que o verdadeiro jejum é a mudança de atitude diante de Deus. Não
adianta vivermos uma vida inteira passando fome (como faziam os fariseus) se o
nosso coração não estiver voltado para Deus e para fazer a verdadeira obra de
Deus. É por esta razão que o profeta Isaías advertiu de modo severo ao povo de
Deus para que cuidasse dos oprimidos e necessitados, mostrando que o verdadeiro
jejum era a mudança do seu interior e a prática do amor ao próximo (Is 58.5-9). Desta forma, desejo sinceramente
que o nosso jejum seja aquele que verdadeiramente agrade ao nosso Deus!
[1]
Jefferson Rodrigues, é Bacharel em Teologia pela Faculdade Evangélica do Piauí,
Licenciado em História pela Universidade Estadual do Piauí, com especialização
em Estados, Movimentos Sociais e Cultura pela mesma universidade. É Evangelista
na Assembleia de Deus em Teresina-PI, Campo do Aeroporto, onde é coordenador de
EBD. Também é membro da Academia Evangélica de Letras do Piauí. Cadeira 32.
[2]
ITIBA, 1996, pp.42-48
[3]
WICLYFFE, 2011, p.1016
[4]
KIVITZ, 2012, p.73
[5]
CHAMPLIN, 2015, p.442
[6]
KIVITZ, 2012, p.73