Por Jefferson Rodrigues[2]
RESUMO
Este trabalho propõe-se a analisar as
implicações que os ensinos de Jesus proferidos no Sermão do Monte,
especificamente na perícope de Mateus 6.19-24, podem ter sobre a cosmovisão da
hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004), especialmente, quando esse modo de
compreender o mundo relativiza valores essenciais para o cristianismo como a
relação altruísta para com próximo. Para tanto, utilizar-se-á o método de
pesquisa qualitativa e bibliográfica para que se apure as implicações possíveis
entre o que é apresentado por alguns teóricos da hipermodernidade e aquilo que
a perícope de Mateus apresente como padrão de cristianismo. Além disso,
valer-se-á de recursos exegéticos que apresentem o sentido histórico-gramatical
do texto de Mateus 6.19-24, com a finalidade de extrair o sentido mais próximo
do que era pretendido pelo autor sacro.
Desta forma, pretende-se responder a algumas indagações,
tais como: Qual cosmovisão é apresentada pela hipermodernidade? O que é
hipermodernidade? Quais são as implicações do ensino de Jesus apresentado em
Mateus 6.19-24 para a sociedade contemporânea? Estas perguntas não esgotam as
possibilidades de questionamentos a serem levantadas, contudo, tais demandas
podem ser propostas em pesquisas posteriores.
Palavras-chaves: 1. Sermão do Monte; 2.
Hipermodernidade; 3. Reino de Deus.
INTRODUÇÃO
O ministério
de Jesus teve como uma de suas marcas a prática do ensino constante. Sua
didática formava cidadãos que teriam dupla nacionalidade: terrena e celeste. O
mestre Jesus foi, sem dúvida, o maior ensinador de todos os tempos. Tal
afirmação tem como pressuposto o conceito preconizado pelas Escrituras, de que
nele habita toda a plenitude de Deus (Cl 2.9), sendo assim, todos os seus
ensinos são superiores aos outros apresentados na história humana, e, portanto,
devem ser considerados como paradigmas para uma vida saudável na esfera física
como espiritual.
Os discípulos
de Jesus registraram suas instruções através das Escrituras. Mormente,
encontram-se nos Evangelhos a apresentação de todos os discursos pedagógicos de
Cristo. Entre os maiores pronunciamentos de Jesus, destaca-se o Sermão do
monte. Para Hendriksen (2010), este é o discurso que apresenta a essência ética
do reino de Deus. Carson (2018) destaca, na introdução ao seu comentário ao
Sermão do Monte, que nestas falas de Jesus encontram-se padrões éticos
necessários para aqueles que são pertencentes ao reino de Deus. É fato, que
neste discurso Jesus extrapola a questão temporal e estende seus ecos a todas
as eras onde existam fiéis cristãos.
Tendo como
base a premissa acima proposta, este trabalho propõe-se a analisar neste
sermão, as implicações que os ensinos de Jesus, especificamente na perícope de
Mateus 6.19-24, podem ter sobre a cosmovisão e que tem sido apresentada pela
chamada hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004), especialmente quando relativiza a
hipermodernidade relativiza valores essenciais para o cristianismo como a
relação altruísta para com próximo. Para tanto, utilizar-se-á o método de
pesquisa qualitativa e bibliográfica para que se apure as implicações possíveis
entre o que é apresentado por alguns teóricos da hipermodernidade e aquilo que
a perícope de Mateus apresente como padrão de cristianismo. Além disso,
valer-se-á de recursos exegéticos que apresentem o sentido histórico-gramatical
do texto de Mateus 6.19-24, com a finalidade de extrair o sentido mais próximo
do que era pretendido pelo autor sacro.
Desta forma,
pretende-se responder a algumas indagações, tais como: Qual cosmovisão é
apresentada pela hipermodernidade? O que é hipermodernidade? Quais são as
implicações do ensino de Jesus apresentado em Mateus 6.19-24 para a sociedade
contemporânea? Estas perguntas não esgotam as possibilidades de questionamentos
a serem levantadas, contudo, tais demandas podem ser propostas em pesquisas
posteriores. Outrossim, acredita-se que as inquirições postas para este
trabalho são satisfatórias para que se obtenha uma resposta a partir da
pesquisa desenvolvida ao longo deste artigo.
1.
A
HIPERMODERNIDADE E SUA COSMOVISÃO
Neste primeiro momento é relevante para a
pesquisa apresentar alguns conceitos que se mostram relevantes para a
compreensão do tema em discussão neste tópico, a saber, a cosmovisão da
hipermodernidade. Assim, demonstrar-se-á a perspectiva apresentada pela
cosmovisão secularista para, em seguida, expandir para os conceitos propostos
pelo pensamento hipermoderno e suas implicações para cotidiano das pessoas,
especialmente, para os cristãos.
1.1.
A cosmovisão secularista
Muito se fala
a respeito do impacto que uma determinada cosmovisão tem sobre as relações
praticadas entre indivíduos que integram certo grupo social. Contudo, para que
se confirme tal proposta é preciso em primeiro lugar se determinar o conceito
de cosmovisão. Miller define cosmovisão como “um conjunto de suposições em que
se crê consciente ou inconscientemente, pela fé, com respeito à composição
básica do universo e como ele funciona” (MILLER, 2003, p.35). Através do
conceito exposto por Miller percebe-se que cosmovisão é um conjunto de crenças
pelas quais os sujeitos compreendem o mundo ao seu redor, não estando ligado,
necessariamente, a fé religiosa.
Para Domingues (2014, p. 676) “A presença de
uma cosmovisão impacta a forma como homens e mulheres interpretam a realidade,
devido às pressuposições que fundamentam o sistema de crenças eleito”. Esta
cosmovisão passa a ser o equivalente a lentes de óculos pelos quais os
indivíduos passam a enxergar a sociedade e seus valores, afinal, “a cosmovisão,
portanto, indica uma forma de olhar a realidade e interpretá-la” (DOMINGUES,
2012, p. 274)
Desta forma,
afirma-se que o mundo pode ser compreendido a partir de diversas cosmovisões.
Contudo, para o foco deste trabalho restringir-se-á ao exame de duas destas
cosmovisões. De um lado há uma cosmovisão que direciona as pessoas a enxergarem
o seu mundo através dos princípios apresentados por Jesus e seus apóstolos. Do
outro lado, há outros “óculos”. Estes “outros óculos” defendem outros valores
como: individualismo, secularismo e hedonismo. A esta cosmovisão denomina-se
secularista. Deste modo, a cosmovisão secularista torna-se predominante na vida
do sujeito pós-moderno, especialmente, quando se observa que ambas as
cosmovisões buscam da satisfação pessoal e a felicidade plena como fim último
da vida do sujeito (BRAGA, 2010, p. 77).
Assim, percebe-se que a cosmovisão
secularista traz consigo valores que são, em grande parte, antagônicos aos
princípios defendidos pelo cristianismo. Não obstante, será através das lentes
secularistas que os tutores da pós-modernidade moldarão o processo formativo
social no ocidente. Diante disso, percebe-se a urgência de uma ressignificação
de tais valores a partir da ética exposto por Cristo em seus ensinos. Contudo,
antes de se tratar de alguns princípios expostos por Jesus através do Sermão do
Monte, é preciso que se examine mais detidamente a cosmovisão secularista
reinante na hipermodernidade.
1.2.
Tempos
hipermodernos
A hipermodernidade surge como um projeto de
expansão do modelo individualista da pós-modernidade. Para Lipovetsky, a década
de 1980 marca o início deste novo movimento social marcado pela continuidade de
valores pós-modernos, porém, ampliados e aprimorados (VERBICARO; RODRIGUES,
2017). Esta tornou-se a era do hiper, que se caracteriza por três marcas
especificas: hipermodernidade, hiperconsumismo e hipernarcisismo (LIPOVETSKY, 2004). Assim, com a hipermodernidade:
Nasce toda uma cultura hedonista e psicologista
que incita à satisfação imediata das necessidades, estimula a urgência dos
prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do
bem-estar, do conforto e do lazer. Consumir sem esperar; viajar; divertir-se;
não renunciar a nada: as políticas do futuro radiante foram sucedidas pelo
consumo como promessa de um futuro eufórico (LIPOVETSKY, 2004, p.61)
Os valores deste novo tempo são centrados
mais do que nunca na figura do “eu”, da inteira satisfação do desejo
individual. A globalização e a ideia de uma cultura de massa, ampliou a
percepção de que tudo o que existe no mundo está ao alcance de qualquer pessoa.
É o tempo perfeito para o consumo desenfreado, sem se preocupar com valores
morais ou religiosos.
O ser humano
hipermoderno vive o presente, aproveita o momento e busca a felicidade
individual. Contudo, há um paradoxo deontológico, pois ao mesmo tempo em que se
consome o hoje, ele mostra-se preocupado com causas globalizantes. Talvez seja
um reflexo do hipernarcisismo existente neste tempo (LIPOVETSKY, 2004).
O
hipernarcisista apresenta uma imagem de responsabilidade diante de assuntos
globais, ou seja, ocorrem preocupações com questões voltadas às causas
ecológicas, sociais e particulares de grupos minoritários, envolvendo o reconhecimento
e a inserção de direitos por meio do ordenamento jurídico.
Há uma
ansiedade, ainda, diante de um possível apocalipse climático ou ecossocial.
Porém, este mesmo indivíduo transforma tais preocupações em mercado, consumo,
em estilo de vida. Possivelmente, tal atitude reflita certa máxima popular:
“antes de salvar o mundo, arrume o seu quarto”. O sujeito hipermoderno
preocupa-se com o mundo, porém, não se envolve com causas locais e objetivas.
Valoriza a vida das baleias, mas defende o direito ao assassinato de crianças
através do aborto.
1.3.
O consumo na hipermodernidade
Percebe-se que
a cosmovisão da hipermodernidade apresenta valores individualistas e
consumistas. Aqui, pretende-se ampliar o conceito de consumo, pois não se trata
de apenas comprar certo objeto inanimado. Na verdade, os tempos hipermodernos
tem gerado um conceito de consumo através das relações entre os sujeitos, desta
forma, “os objetos que atualmente consumimos são mais a amizade, a intimidade,
o amor, o orgulho, a felicidade e a alegria[...]”(KAVANAUGH, 1984, p.53). Não é
uma questão meramente de possuir um bem de consumo, mas são valores que se
entranharam nas relações entre as pessoas, as quais deveriam ser sagradas,
conforme a fé cristã ensina.
Pessoas
aproximam-se de outras com interesse de adquirir vantagens pessoais. A mídia
vende o padrão ideal de uma vida bem-sucedida. Logo, quando não se atinge tais
padrões requeridos pelo sistema, o sujeito sofre dupla pressão através de
cobranças: 1. A pressão eclode de si
mesmo, pois o sujeito deseja ser igual ao padrão “ideal”; 2. As demandas são
postas pelos outros, pois eles exigem um paradigma de perfeição inatingível
(BETO, 2000, p.41). Dessa forma, esse modelo de consumo transforma pessoas em
objetos de consumo, que poderá (ou não) trazer vantagens pessoais para aquele
que “compra” a relação.
A religião
igualmente sofre com este modelo. Os cultos e as celebrações passaram a ter que
atingir o nível exigido pela sociedade de consumo. Exige-se que as celebrações
religiosas tenham em suas programações elementos que as tornem atrativas, e que
façam com que o fiel/consumidor se sinta motivado a ir ao templo, a ligar a TV,
ou mais recentemente, a assistir a “live” que a comunidade religiosa irá
realizar. Há um processo de secularização do sagrado, “[...] pois a religião
passa a ser objeto de escolha do mercado religioso, conforme os interesses,
desejos e as necessidades individuais” (PEREIRA, 2016, p. 88).
Neste afã de satisfazer o cliente/fiel,
igrejas perdem de vista os parâmetros bíblicos, a fim de serem vistas como
antenadas com as últimas tendências do mercado cristão. Neste ponto, precisa-se
questionar: existe mercado cristão? A resposta é sim e não. O sim vem da
realidade experimentada no cenário brasileiro, onde facilmente se percebe que a
fé cristã se tornou meio de arrecadação financeira e de promoção de artistas
que vendem seu nome e seus produtos, atendendo as necessidades de uma religião
pautada na satisfação individual (PEREIRA, 2016).
Em
contrapartida, pode-se dizer que não existe mercado cristão com base nos
princípios bíblicos. Assim, faz-se necessário que se observe os valores
apresentados por Jesus no seu mais extenso discurso, registrado no evangelho de
Mateus: o sermão do Monte. Para tanto, examinar-se-á a seguir a perícope de
Mateus 6.19-24.
2.
IMPLICAÇÕES
ÉTICAS DO DISCURSO DE JESUS EM MATEUS 6.19-24
Percebe-se que a cosmovisão reinante no mundo
contemporâneo tem sido a secularista e que a mesma traz como valores
prioritários aqueles advindos da hipermodernidade. Assim, é relevante, para o
cristão, que haja uma posição oposta a este quadro. Para tanto, se averiguará
os princípios exposto nas Escrituras, mormente, aqueles proferidos por Jesus,
os quais são essenciais para consolidar uma cosmovisão que esteja alinhada com
os valores do Reino de Deus, conforme apresentados nos ensinos de Cristo. Deste
modo, se examinará com mais detalhes os ensinos expostos na perícope de Mateus
6.19-24.
2.1.
O Sermão
do Monte
O texto a ser
analisado encontra-se em uma das mais longas instruções de Jesus, trata-se do
Sermão do Monte distribuído entre os capítulos 5, 6 e 7 do livro de Mateus.
Este é um discurso proferido por Jesus logo após as suas primeiras prédicas
dirigidas publicamente às multidões (Mt 4.12-25). Percebe-se que a forma com
que Jesus falava atraia multidões, que passavam a segui-lo. Assim, por onde
quer que Jesus fosse as multidões o seguiam. Mateus afirma que grandes
multidões acompanhavam ao Mestre (Mt 4.25). Eram pessoas enfermas e oprimidas
que vinham “[...] da Galileia, Decápolis, Jerusalém, Judéia e da região do
outro lado do Jordão” (Mt 4.25 b), em busca de solução para suas aflições.
As multidões
cresciam e o número de discípulos também. Diante do número cada vez maior de
seguidores, Jesus precisava ensiná-los sobre o cerne de sua mensagem: o reino
de Deus. Este reino na perspectiva apresentada pelo Evangelho de Mateus, não se
refere a um reino temporal, mas assume um aspecto espiritual (CARSON, 2018). Entrar
no reino de Deus é o equivalente ao conceito joanino de ter a vida eterna (Jo
5.24). Deste modo, para estes novos súditos do reino de Deus era preciso
ensinar os padrões éticos deste domínio espiritual. Por isso, Jesus ocupa-se de
um extenso ensino, abordando diversas atitudes esperadas de um discípulo que
segue o Rei do reino.
De modo organizado, o escritor do Evangelho
de Mateus divide o sermão do Monte em três temas propostos, conforme
apresentado por Hendriksen (2010). No primeiro eixo dialogal, Jesus fala sobre
os cidadãos do reino de Deus (Mt 5.2-12) e estabelece como deveria ser sua
relação com mundo (vv. 13-16). Em seguida é apresentada a justiça do reino, o
padrão que o Senhor exige daqueles que fazem parte deste domínio (Mt
5.17-7.12). Por último, Jesus conclui seu sermão com uma ardente exortação a
que se entre no reino (v.13-27). Percebe-se que tudo o que o mestre falou
causou um forte impacto nos ouvintes e é descrito de modo categórico nos
versículos finais do sermão, pois “[...] as multidões estavam maravilhadas com
o seu ensino” (v. 28 b).
Este ensino
que moveu multidões, há dois mil anos atrás, ainda ecoa no tempo presente. Os
discípulos de Cristo do século presente devem se atentar para as orientações
atemporais das palavras do Senhor, direcionadas para todos aqueles que já
entraram no reino de Deus através da fé em Jesus. Assim, independentemente da
cosmovisão dominante nos tempos hipermodernos, o discípulo de Jesus deve seguir
o padrão do reino ao qual ele pertence.
A cosmovisão
do Reino de Deus é diretamente oposta ao padrão consumista da hipermodernidade.
Ela centra-se, primordialmente, em dois valores: amar a Deus acima de tudo e ao
próximo como a si mesmo (DOMINGUES, 2012). Ver-se-á a essência da cosmovisão do
Reino a partir de uma análise do discurso de Jesus, contido em Mateus 6.19-24.
2.2.
Um confronto à hipocrisia religiosa(vv.1-18)
O capítulo 6 do Evangelho de Mateus é uma
continuação do já mencionado Sermão do Monte. Jesus inicia este discurso
ensinando aos seus discípulos o modo correto de como praticar as obras de
justiça no reino de Deus. Obras de justiça é um termo utilizado para se referir
a três ações que eram vistas como de grande valor pelos judeus religiosos nos
dias de Jesus: esmolas, oração e jejum (Mt 6.1-18). Em sua prédica, Jesus
ensina que tais ações não devem ter como objetivo mostrar uma falsa santidade,
como faziam os religiosos daqueles dias. Era preciso ajudar, orar e jejuar com
a finalidade certa, pois Deus enxerga o interior do coração, não necessitando
de nenhuma mostra exterior para que sua atenção seja atraída (CHEUG, 2011).
Há nesta perícope, um confronto direto à
hipocrisia praticada pelos fariseus e escribas ao dar, orar e jejuar (vv. 2, 5
e 16). A palavra grega “ὑποκριταὶ”(hipokritai) tem como significado básico
“ator, intérprete ou alguém que representa o papel de outro”(ROBERTSON, 2011,
p.80). Este foi o termo escolhido pelo escritor do Evangelho de Mateus, para
descrever as ações dos fariseus, que agiam como um ator que interpretava um
papel de caridade, quando na realidade buscavam satisfazer seus desejos
egoísticos.
Os religiosos hipócritas alegavam cumprir a
“Lei”, porém, suas ações estavam longe disto. Eram atores que fingiam ser
alguém que não eram. Em público, eles agiam de um modo a ser glorificado pelos
homens, mas diante de Deus, suas ações já estavam reprovadas. Assim, Jesus
orienta que os seus discípulos não ajam deste modo, pois a justiça exigida
daqueles que fazem parte do reino de Deus deve ser superior àquela praticada
pelos religiosos infiéis. A cosmovisão do Reino exige do discípulo sinceridade
e fidelidade com relação à obra para o qual foi designado.
2.3.
Construindo tesouros no lugar certo (vv.19-24)
A partir do capítulo 6 verso 19 do Evangelho
de Mateus há uma aparente mudança no discurso de Jesus. Ele sai do tema sobre a
forma correta de se praticar obras de justiça e começa a falar a respeito dos
perigos de se idolatrar os bens materiais. Contudo, não se deve deduzir,
apressadamente, que houve uma mudança real de objetivo. Na verdade, Jesus
continua ensinando aos seus discípulos sobre a justiça pretendida daqueles que
se dizem súditos do reino de Deus, os portadores de vida. Estes homens e
mulheres deveriam centrar-se nos tesouros que transcendem o visível, uma vez
que são os reais tesouros do reino que devem impulsionar as ações dos crentes
fiéis. Assim, a exortação de Jesus é enfática: “Não ajunteis tesouros na terra
[...]” (Mt 6.19).
Esta orientação de Jesus é uma clara
advertência contra aqueles que se dizendo discípulos de Cristo, continuam com a
centralidade da sua vida voltada para o acúmulo de vantagens pessoais e
terrenas. Carson (2010, p.2018) apresenta uma opção de tradução que realça a
verdade ensinada por Cristo neste texto: “o tempo presente da proibição ‘mê
thêsaurizete’ bem podia ser traduzida por: ‘Parem de acumular tesouros’”. Esta
é uma tradução que mostra a importância do discípulo de Cristo não se amoldar
ao padrão consumista exigido por qualquer sociedade e em qualquer tempo.
Outra relevante observação sobre este versículo
é a evidente conexão com a proposta da perícope anterior (Mt 6.1-18). Jesus
denunciou a hipocrisia dos fariseus e escribas ao praticarem obras de justiça
com a finalidade de serem reconhecidos diante dos homens. Logo, estes
religiosos estavam acumulando tesouros diante dos homens e não diante de Deus.
Vicent Cheug, diz que:
[...] os
hipócritas religiosos estão interessados em criar uma reputação de piedade para
o povo, com relativamente pouca consideração para como Deus os vê, os pagãos – religiosos
ou não – estão obcecados em acumular tesouros sobre a terra, e não no céu
(CHEUG, 2011, p.201).
Em
contrapartida, o discípulo de Cristo deve centrar-se naquilo que agrada
verdadeiramente ao Rei do reino. Assim, a atitude primeira requerida do
discípulo é que ele tenha compromisso com o “Céu” e não com os tesouros da
terra (Mt 6.19)
A sentença final proferida por Jesus, no
versículo 21, é um chamado à reflexão e ao real compromisso que o súdito do
reino de Deus deve assumir. Afinal, onde está o seu tesouro? Nas riquezas
materiais? Na glória individual? No bem-estar pessoal? Jesus é categórico ao
afirmar: “Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso
coração” (Mt 6.21, NVI). Hendriksen (2010) faz algumas observações relevantes sobre
o sentido pretendido por Jesus ao proferir este ensino; ao mesmo tempo,
percebe-se a clara advertência contra a cosmovisão da hipermodernidade, em que
coloca o consumismo como o centro da vida. Deste modo:
[...] se o
verdadeiro tesouro de uma pessoa, seu propósito último em todos os seus
esforços, é algo que pertence a esta terra- a aquisição de dinheiro, fama,
popularidade, prestígio, poder – então o seu coração, o próprio centro de sua
vida (Pv 4.23), será completamente absorvido por este objetivo mundano. Todas
as suas atividades, mesmo aquelas que são de caráter religioso, serão
subservientes a esse único propósito. Por outro lado, se movido por sincera
humildade e gratidão a Deus, faz o reino de Deus o seu tesouro, ou seja, o
reconhecimento deleitoso da soberania em sua própria vida e em cada esfera da
mesma, então é ali também onde estará o seu coração. Nesse caso, o dinheiro
será uma ajuda, e não um entrave (HENDRIKSEN, 2010, p.428)
Outrossim, percebe-se que o tesouro do
cristão deve ser distinto tanto daqueles que não fazem parte do reino de Deus,
como daqueles que somente acham que fazem parte deste reino, a quem Jesus
chamou de hipócritas. Não há problema em se ter bens materiais, porém, a
questão é colocar nestes bens todo o coração, todas as energias nas riquezas
materiais. O discípulo que compreender bem os ensinos de Jesus é participante
deste mundo, vive na hipermodernidade, contudo, os seus valores são oriundos do
reino de Deus e não do reino do consumo hipermoderno.
Ainda no capítulo 6 do Evangelho de Mateus,
Jesus continua com suas observações quanto à atitude esperada dos discípulos do
reino. Nos versículos 22 a 24 é apresentado uma intrigante parábola sobre a
condição dos olhos dos discípulos. Nos versos 22 e 23 é proposta a seguinte
questão: “[...] se teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz [...] se os
teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso”). Perceba que a questão
levantada nesta parábola envolve a condição do corpo de uma pessoa, uma alusão
a sua vida espiritual. Neste caso, a depender do tipo de olho que esta pessoa
possui, então, ela poderá ter luz em todo o seu corpo ou viverá em trevas.
O texto bíblico de Mateus 6 faz uso do
adjetivo grego ἁπλοῦς(haplũs)
para descrever a qualidade dos olhos. Robertson (2011, p.86) destaca que ἁπλοῦς
“é usada para referir-se a um contrato de casamento no qual o marido tinha de
pagar o dote ‘puro e simples’”. Neste sentido, ser puro e simples parece ser o
indicativo de como deveria ser os olhos de um cristão. Se os olhos forem bons
(haplũs), tendo uma visão reta, pura, e não apresentando falsas imagens, então,
o corpo igualmente será bom e viverá em luz. Este conceito está ligado a tudo
que foi dito nos versículos anteriores, pois do súdito do reino de Deus é
requerido que sua visão seja única e saudável. Ele não pode olhar para os
valores terrenos e vê-los como algo certo. A sua visão deve ser perfeitamente
estabelecida.
Por fim, Jesus informa algo que continua
sendo de muita relevância para os dias atuais. “Não podeis servir a Deus e
Mamom” (v. 24). Servir ao reino de Deus é uma atividade exclusiva. O coração
deste servente deve estar inteiramente entregue a sua pátria, ao seu Rei.
Contudo, ainda são muitos os servos deste reino que mantém o seu coração
dividido entre Deus e Mamom. Deve-se esclarecer que Mamom é uma palavra de
origem caldeia, siríaca e púnica referente ao deus (ou demônio) da riqueza
(ROBERTSON, 2011). Assim, Jesus considera a riqueza (o amor a ela), um deus que
pode cooptar corações e destruir os homens.
Deste modo, o tesouro do crente fiel jamais
poderá ser posto nas riquezas deste mundo ou em seus valores corrompidos. Os
olhos do crente devem ser capazes de reproduzirem a verdadeira imagem do padrão
requerido pelo Senhor do reino de Deus. Servir a este Senhor requer
exclusividade, por isso, “ninguém pode se dedicar a Deus e ao dinheiro ao mesmo
tempo[...] essas três metáforas- tesouro, luz e escravidão – unem-se para
exigir lealdade inabalável aos valores do reino” (CARSON, 2018, p.90)
CONSIREAÇÕES FINAIS
A cosmovisão
da hipermodernidade é um contraponto aos padrões tradicionais da sociedade
pautada nos valores cristãos. Nos tempos hipermodernos, o consumismo
desenfreado tem dado a tônica das relações sociais. Com este pensamento, o
coletivo deixa de ter valor e a satisfação imediata do sujeito deve ser
alcançada a todo custo. Percebe-se que tais valores têm chegado até mesmo nas
relações religiosas, um reduto onde se pressupõe que os ensinos de Jesus são
predominantes.
Diante desta
situação, recomenda-se que o cristão se volte para os ensinos de Jesus e a
partir disso, estabeleça a sua cosmovisão que deverá ser aplicada nas mais
diversas esferas da sociedade. Deve-se frisar que os ensinos de Jesus são
atemporais e, por isso mesmo, tornam-se relevantes para os tempos atuais de
hipermodernidade.
Assim, Jesus
ensinou que as práticas do cristão não podem ser hipócritas. O coração do
discípulo precisa centrar-se nos valores que realmente importam, a saber: os
valores do reino de Deus. Viver através dos valores do reino de Deus implica
em: 1. acumular tesouro no lugar certo (no Céu); 2. ter o coração voltado para
o lugar certo (o Céu); 3. enxergar da maneira certa (à maneira do Céu); 4.
servir da maneira certa (somente à Deus).
Por fim, após
a compreensão dos valores ensinados por Jesus, compreende-se que será possível
para o cristão ressignificar os princípios propostos pela hipermodernidade.
Afinal, a mensagem de Cristo não pode ser vista como um conjunto de palavras
que ficaram no passado. Antes, a compreensão adequada das instruções de Jesus
deverá conduzir o cristão para mudanças significativas em seus pensamentos e
ações, levando-o a ser um sujeito transformador do seu tempo. As palavras de
Jesus através de seus discípulos hoje devem ser capazes de influenciar este
mundo a viver através dos valores do
reino de Deus e não apenas pelos valores impostos pela hipermodernidade.
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[1]
Esta frase é fruto de uma
paráfrase efetivada a partir da expressão proferida por Jesus em João
13.34 onde está escrito: “Um novo mandamento vos dou[...]”
[2]
Mestrando em Teologia. Especialista em Teologia e Interpretação Bíblica.
Especialista em Estados, movimentos sociais e cultura. Bacharel em Teologia.
Licenciado em História. Professor de História e Teologia na rede pública e
privada de Teresina-PI. E-mail: historiacomcristo@hotmail.com