sábado, 4 de julho de 2020

CAMELO E AGULHA: O QUE JESUS REALMENTE QUERIA FALAR?



Por Jefferson Rodrigues

Acredito que o leitor já tenha tido contato com as palavras de Jesus direcionadas a um jovem rico que, teimosamente, colocava seu coração sobre as riquezas que tinha. O texto ao qual nos referimos encontra-se no evangelho de Mateus, Marcos e Lucas. Contudo, para efeito de compreensão nos deteremos na perícope que se apresenta em Mateus 19.16-26, com enfoque principal na incógnita citação de Jesus registrada no versículo 24 que diz: “E outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no Reino de Deus”. Diante desta afirmação, nos cabe perguntar: o que Jesus, de fato, quis dizer com esta expressão? Será que ele falou de agulha e camelo no sentido literal ou usou apenas de uma figura de linguagem?
I.                   AS VÁRIAS INTERPRETAÇÕES SOBRE ESTE TEXTO
a)                 Uma brecha na cidade de Jerusalém. É bem possível que o leitor já tenha se deparado com alguma explicação alegórica sobre esse texto, especialmente, a mais famosa delas, atribuída originalmente a Tomás de Aquino. Tal teoria busca explicar esse texto a partir de uma visão em que o termo “fundo de agulha” não se refere de fato a uma agulha de uso costumeiro. Segundo esta interpretação, seria uma brecha existente em muralhas das cidades antigas pelas quais os viajantes que chegassem antes do amanhecer poderiam entrar com seus animais. Em virtude dos viajentes chegarem a noite e não haver como fiscalizar a mercadoria, os vendedores deveriam deixar suas mercadorias do lado de fora da cidade e entrar com seus animais por uma estreita passagem chamada de “fundo de agulha”. As mercadorias dos viajantes deveriam ser postas de lado e os camelos só entrariam nas cidades por essa passagem ajoelhados e sem as mercadorias que trazia em seus lombos; sendo esta, portanto, uma bela alegoria para a caminhada cristã.
Esta teoria é muito atraente e até alegoricamente plausível. Contudo, não há registros arqueológicos ou mesmo literários antigos que subsidiem tal visão. Esta parece muito mais uma perspectiva alegórica, típica do método de interpretação que prevaleceu na Idade Média, não parecendo ser a ideia que Jesus inicialmente quis apresentar a seus leitores (HENDRIKSEN, 2010)
b)                 Erro de tradução na palavra camelo. A segunda teoria está vinculada a um possível erro de tradução. Segundo William Barclay (19?) os substantivos gregos “kámelos” (camelo) e Kamilos (corda grossa) teriam sido confundidos pelos copistas posteriores, e por conseguinte, estes interpretes teriam trocado, acidentalmente, a letra grega iota por omicron, pois a princípio a sonoridade das vogais gregas eram similares. Se esta teoria estiver correta, a ideia que Jesus quis passar a seus discípulos era a de que seria dificílimo para um rico entrar nos reino dos Céus, assim como seria improvável alguém conseguir passar uma corda grossa, típica de uso naval em ancoras, pelo estreito buraco de uma agulha.
Apesar de atraente, não há como subscrever tal teoria. Fazemos tal afirmação por entendermos que os textos gregos mais antigos não apresentam qualquer variação gramatical na representação do substantivo grego “Kamelos”, sendo que, somente em textos tardios foram vistos a troca de “kamelos” por “kamilos”, conforme aponta o respeitado estudioso da crítica textual Roger L. Omanson (2018) em sua obra Variantes Textuais do novo Testamento. Assim, para que a interpretação seja mais coerente, devemos privilegiar textos mais antigos em detrimento dos achados mais recentes e duvidosos. Além disso, a tradição cristã parece não concordar com tal sugestão de falha na interpretação do texto.

II.                O SENTIDO POSSIVEL DAS PALAVRAS DE JESUS
Diante do conjunto de ensinos de Jesus ao jovem rico, e apegado aos seus bens materiais, parece não ser muito difícil compreender o que Mestre realmente ensinou aos seus discípulos diante daquela oportunidade pedagógica. Desta forma, concordamos com Craig S. Keener (2019) quanto ao propósito de Jesus com esta expressão: o Mestre usou de uma hipérbole para ratificar o seu ensino, devendo ser entendido como literal tal sugestão dada pelo Senhor (HENDRIKSEN, 2010)
Linguisticamente devemos analisar que o texto grego nos apresenta a seguinte construção: “πάλιν δὲ λέγω ὑμῖν εὐκοπώτερόν ἐστιν κάμηλον (kamelon) διὰ τρυπήματος ῥαφίδος (rhaphidos)”. Para nosso estudo devemos nos concentrar nas duas palavras em destaque na sentença, a saber: kamelon (câmelo) e rhaphidos (agulha). De acordo com o léxico de Louw e Nida (2019) o substantivo kamelon refere-se a um animal de grande porte com lombo curvado, devendo, portanto, ser entendido como uma referência a um animal literal. Concordando com tal proposição temos as palavras do léxico de Marvin Richardson Vicent (2012) que aponta para um antigo ensino judaico no qual Jesus se apropriou e ensinou, de fato, a impossibilidade de uma animal de grande porte entrar pelo orifício de uma agulha. Assim, de acordo com os linguistas citados “kamelon” refere-se necessariamente a um animal de grande porte, tal qual entendemos nos dias atuais. Daí surge outra questão: seria esta agulha uma fenda da cidade?
Para responder a tal proposição iniciamos com a expressiva fala de Vincent em seu léxico: “a alegação [ de Jesus] não deve ser explicada sob a alegação de uma porta estreita que seria chamada de “fundo de agulha”(2012, p.91, v1). De acordo com os já citados Louw e Nida (2019) agulha de fato é agulha! Segundo estes autores a palavra grega “rhaphidos” trata-se de “um instrumento pequeno e fino, pontudo numa das extremidades e com um buraco na outra, usado na costura[...]”( LOUW; NIDA, 2019, p. 72); Esta tradução é corroborada após uma análise dos léxicos de Mounce(2017) e  Rusconi(2015), onde apresentam que tal substantivo refere-se a simplesmente uma agulha no sentido comum da palavra. Perceba que segundo a tradução proposta no léxico de Louw e Nida não há espaço para entender esta palavra de outra forma a não ser a literal, por

isso,
A referência a um camelo passando pelo fundo de uma agulha é um exemplo de hipérbole retórica, isto é, um exagero intencional para mostrar que o acontecimento a que se estar fazendo referência é extremamente difícil ou pouco provável de se concretizar (idem, idem, p.73)
Lançando luz a partir de fontes fora no Novo Testamento, é possível compreender que Jesus disse essa expressão pautado em um ensino Talmudico recorrente em seus dias. De acordo com A.T. Robertson a ideia da expressão usada por Jesus no versículo aqui estudado fazia parte dos ensinos judaicos “no Talmude Babilônico que tem um prové,rbio que diz que nem em seus sonhos o homem viu um elefante passar pelo orifício de uma agulha”(ROBERTSON, 2011, p.220). Esta é mesma posição do já citado Vicent (2019), assim como por Russel Norman Champlim(2015). Para estes interpretes Jesus teria substituído a figura do elefante contida no proverbio talmúdico, pelo camelo em virtude de este ser o animal de maior porte existente na Palestina. Destarte, com tal afirmação Jesus mostrava que para aqueles que estavam apegados aos bens materiais as sérias dificuldades que encontrariam para entrar no Reino dos Céus, caso não mudassem sua postura.
III.            O ENSINO DO TEXTO
Diante desta rápida exegese podemos chegar a uma conclusão que nos parece a mais plausível com todo o discurso de Jesus. Assim, ao falar para um homem de alta posição social que este deveria se desprender dos seus bens a fim de seguir ao Senhor, e, diante da negativa deste homem em deixar seu apego as virtudes terrenas, Jesus, imediatamente, mostra aos seus ouvintes que enquanto o coração do homem estiver preso aos bens terrenos, colocando-o acima do Reino dos Céus, a este seria impossível herdar a vida eterna.
É interessante observar que Jesus usa de uma imagem que apresentaria a impossibilidade de um homem ser salvo por si só, apontando para uma doutrina pouco discutida em seus dias: a Graça de Deus no processo de salvação. Diante da aparente proposta absurda de Jesus - de um camelo passar no fundo de uma agulha- os discípulos assustados se voltam para Jesus e com um tom de quase desânimo interpelam a Cristo: “quem poderá, pois, salvar-se?” (v.25). É perceptível que os discípulos entenderam a proposição de Jesus de modo literal, pois assim como é impossível um camelo (literal) passar pelo fundo de agulha(literal), igualmente seria impossível a qualquer homem (inclusive eles) salvarem-se.
Nãos obstante, Jesus aproveitou a inquietação dos ouvintes para trazer um novo e maravilhoso ensino: a salvação vem do Pai. Desta forma, como já poderíamos prever, Jesus não deixaria seus discípulos inquietos e perdidos. Por isso, o mestre aproveitando-se da oportunidade ensina-os que a salvação jamais será obra humana, mas é algo que procede do Senhor. Jesus acalma seus discípulos e os ensina que: “Aos homens é isso impossível, mas para Deus tudo é possível” (v.26). Tudo é por Ele e para Ele. Louvado seja Deus!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A analise proposta neste texto deixa claro que Jesus aproveitou a oportunidade posta para trazer um ensino valioso sobre a salvação. O mestre fala aos seus discípulos que eles deveriam tirar o seu coração do mundo e confiar que a salvação seria providenciada por Deus. De igual modo, não há motivos históricos ou linguísticos para acreditarmos que o versículo 24 de Mateus 19 faça uma referência a qualquer coisa que não seja uma expressão hiperbólica, dita com a finalidade de dar forte ênfase na mensagem de Jesus aos seus discípulos sobre salvação e graça Divina.
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Sobre o autor: Jefferson Rodrigues é ministro do evangelho na AD do Aeroporto, em Teresina-PI. Teólogo, historiador, escritor e professor de exegese do Novo Testamento, entre outras disciplinas teológicas.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
BARCLAY, William. Comentário bíblico de Mateus. Disponível em: < http://www.iprichmond.com/atos> acesso em 13 de jun. de 2020.
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Mateus. v1. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010
LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene A. (ed.). Léxico grego-português do Novo Testamento baseados em domínios semânticos. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
MOUNCE, William D. Léxico analítico grego do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2017.
ROBERTSON, A.T. Comentário de Mateus e Marcos: à luz do Novo Testamento grego. Rio de Janeiro: CPAD, 2011.
RUSCONI, Carlo. Dicionário do grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2015.
OMANSON, Roger L. Variantes textuais do Novo Testamento: análise e avaliação do aparato critico de “O Novo Testamento grego”. São Paulo: SBB, 2018.
VICENT, Marvin Richardson. Estudo no vocabulário grego do Novo Testamento. v. 1. Rio de Janeiro: CPAD, 2012.



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