Acredito
que o leitor já tenha tido contato com as palavras de Jesus direcionadas a um
jovem rico que, teimosamente, colocava seu coração sobre as riquezas que tinha.
O texto ao qual nos referimos encontra-se no evangelho de Mateus, Marcos e
Lucas. Contudo, para efeito de compreensão nos deteremos na perícope que se
apresenta em Mateus 19.16-26, com enfoque principal na incógnita citação de
Jesus registrada no versículo 24 que diz: “E outra vez vos digo que é mais fácil
passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no Reino de
Deus”. Diante desta afirmação, nos cabe perguntar: o que Jesus, de fato, quis
dizer com esta expressão? Será que ele falou de agulha e camelo no sentido
literal ou usou apenas de uma figura de linguagem?
I.
AS VÁRIAS INTERPRETAÇÕES SOBRE ESTE
TEXTO
a)
Uma brecha na cidade de Jerusalém.
É bem possível que o leitor já tenha se deparado com alguma explicação alegórica
sobre esse texto, especialmente, a mais famosa delas, atribuída originalmente a
Tomás de Aquino. Tal teoria busca explicar esse texto a partir de uma visão em
que o termo “fundo de agulha” não se refere de fato a uma agulha de uso costumeiro.
Segundo esta interpretação, seria uma brecha existente em muralhas das cidades
antigas pelas quais os viajantes que chegassem antes do amanhecer poderiam
entrar com seus animais. Em virtude dos viajentes chegarem a noite e não haver
como fiscalizar a mercadoria, os vendedores deveriam deixar suas mercadorias do
lado de fora da cidade e entrar com seus animais por uma estreita passagem
chamada de “fundo de agulha”. As mercadorias dos viajantes deveriam ser postas
de lado e os camelos só entrariam nas cidades por essa passagem ajoelhados e
sem as mercadorias que trazia em seus lombos; sendo esta, portanto, uma bela
alegoria para a caminhada cristã.
Esta
teoria é muito atraente e até alegoricamente plausível. Contudo, não há registros
arqueológicos ou mesmo literários antigos que subsidiem tal visão. Esta parece
muito mais uma perspectiva alegórica, típica do método de interpretação que
prevaleceu na Idade Média, não parecendo ser a ideia que Jesus inicialmente
quis apresentar a seus leitores (HENDRIKSEN, 2010)
b)
Erro de tradução na palavra camelo.
A segunda teoria está vinculada a um possível erro de tradução. Segundo William
Barclay (19?) os substantivos gregos “kámelos” (camelo) e Kamilos (corda grossa)
teriam sido confundidos pelos copistas posteriores, e por conseguinte, estes
interpretes teriam trocado, acidentalmente, a letra grega iota por omicron, pois
a princípio a sonoridade das vogais gregas eram similares. Se esta teoria
estiver correta, a ideia que Jesus quis passar a seus discípulos era a de que seria
dificílimo para um rico entrar nos reino dos Céus, assim como seria improvável alguém
conseguir passar uma corda grossa, típica de uso naval em ancoras, pelo
estreito buraco de uma agulha.
Apesar
de atraente, não há como subscrever tal teoria. Fazemos tal afirmação por
entendermos que os textos gregos mais antigos não apresentam qualquer variação gramatical
na representação do substantivo grego “Kamelos”, sendo que, somente em textos tardios
foram vistos a troca de “kamelos” por “kamilos”, conforme aponta o respeitado
estudioso da crítica textual Roger L. Omanson (2018) em sua obra Variantes Textuais
do novo Testamento. Assim, para que a interpretação seja mais coerente, devemos
privilegiar textos mais antigos em detrimento dos achados mais recentes e duvidosos.
Além disso, a tradição cristã parece não concordar com tal sugestão de falha na
interpretação do texto.
II.
O SENTIDO POSSIVEL DAS PALAVRAS DE JESUS
Diante do conjunto de ensinos de Jesus ao
jovem rico, e apegado aos seus bens materiais, parece não ser muito difícil compreender
o que Mestre realmente ensinou aos seus discípulos diante daquela oportunidade pedagógica.
Desta forma, concordamos com Craig S. Keener (2019) quanto ao propósito de
Jesus com esta expressão: o Mestre usou de uma hipérbole para ratificar o seu
ensino, devendo ser entendido como literal tal sugestão dada pelo Senhor
(HENDRIKSEN, 2010)
Linguisticamente devemos analisar que o
texto grego nos apresenta a seguinte construção: “πάλιν δὲ λέγω ὑμῖν εὐκοπώτερόν
ἐστιν κάμηλον (kamelon) διὰ τρυπήματος ῥαφίδος (rhaphidos)”.
Para nosso estudo devemos nos concentrar nas duas palavras em destaque na sentença,
a saber: kamelon (câmelo) e rhaphidos (agulha). De acordo com o léxico de Louw
e Nida (2019) o substantivo kamelon refere-se a um animal de grande porte com
lombo curvado, devendo, portanto, ser entendido como uma referência a um animal
literal. Concordando com tal proposição temos as palavras do léxico de Marvin
Richardson Vicent (2012) que aponta para um antigo ensino judaico no qual Jesus
se apropriou e ensinou, de fato, a impossibilidade de uma animal de grande
porte entrar pelo orifício de uma agulha. Assim, de acordo com os linguistas citados
“kamelon” refere-se necessariamente a um animal de grande porte, tal qual
entendemos nos dias atuais. Daí surge outra questão: seria esta agulha uma fenda
da cidade?
Para responder a tal proposição iniciamos
com a expressiva fala de Vincent em seu léxico: “a alegação [ de Jesus] não
deve ser explicada sob a alegação de uma porta estreita que seria chamada de “fundo
de agulha”(2012, p.91, v1). De acordo com os já citados Louw e Nida (2019)
agulha de fato é agulha! Segundo estes autores a palavra grega “rhaphidos”
trata-se de “um instrumento pequeno e fino, pontudo numa das extremidades e com
um buraco na outra, usado na costura[...]”( LOUW; NIDA, 2019, p. 72); Esta
tradução é corroborada após uma análise dos léxicos de Mounce(2017) e Rusconi(2015), onde apresentam que tal
substantivo refere-se a simplesmente uma agulha no sentido comum da palavra.
Perceba que segundo a tradução proposta no léxico de Louw e Nida não há espaço
para entender esta palavra de outra forma a não ser a literal, por
A
referência a um camelo passando pelo fundo de uma agulha é um exemplo de hipérbole
retórica, isto é, um exagero intencional para mostrar que o acontecimento a que
se estar fazendo referência é extremamente difícil ou pouco provável de se concretizar
(idem, idem, p.73)
Lançando luz a partir de fontes fora no
Novo Testamento, é possível compreender que Jesus disse essa expressão pautado
em um ensino Talmudico recorrente em seus dias. De acordo com A.T. Robertson a
ideia da expressão usada por Jesus no versículo aqui estudado fazia parte dos
ensinos judaicos “no Talmude Babilônico que tem um prové,rbio que diz que nem
em seus sonhos o homem viu um elefante passar pelo orifício de uma agulha”(ROBERTSON,
2011, p.220). Esta é mesma posição do já citado Vicent (2019), assim como por
Russel Norman Champlim(2015). Para estes interpretes Jesus teria substituído a
figura do elefante contida no proverbio talmúdico, pelo camelo em virtude de
este ser o animal de maior porte existente na Palestina. Destarte, com tal
afirmação Jesus mostrava que para aqueles que estavam apegados aos bens materiais
as sérias dificuldades que encontrariam para entrar no Reino dos Céus, caso não
mudassem sua postura.
III.
O ENSINO DO TEXTO
Diante desta rápida exegese podemos chegar
a uma conclusão que nos parece a mais plausível com todo o discurso de Jesus. Assim,
ao falar para um homem de alta posição social que este deveria se desprender dos
seus bens a fim de seguir ao Senhor, e, diante da negativa deste homem em
deixar seu apego as virtudes terrenas, Jesus, imediatamente, mostra aos seus
ouvintes que enquanto o coração do homem estiver preso aos bens terrenos,
colocando-o acima do Reino dos Céus, a este seria impossível herdar a vida
eterna.
É interessante observar que Jesus usa de
uma imagem que apresentaria a impossibilidade de um homem ser salvo por si só, apontando
para uma doutrina pouco discutida em seus dias: a Graça de Deus no processo de
salvação. Diante da aparente proposta absurda de Jesus - de um camelo passar no
fundo de uma agulha- os discípulos assustados se voltam para Jesus e com um tom
de quase desânimo interpelam a Cristo: “quem poderá, pois, salvar-se?” (v.25). É
perceptível que os discípulos entenderam a proposição de Jesus de modo literal,
pois assim como é impossível um camelo (literal) passar pelo fundo de agulha(literal),
igualmente seria impossível a qualquer homem (inclusive eles) salvarem-se.
Nãos obstante, Jesus aproveitou a
inquietação dos ouvintes para trazer um novo e maravilhoso ensino: a salvação
vem do Pai. Desta forma, como já poderíamos prever, Jesus não deixaria seus discípulos
inquietos e perdidos. Por isso, o mestre aproveitando-se da oportunidade
ensina-os que a salvação jamais será obra humana, mas é algo que procede do
Senhor. Jesus acalma seus discípulos e os ensina que: “Aos homens é isso impossível,
mas para Deus tudo é possível” (v.26). Tudo é por Ele e para Ele. Louvado seja
Deus!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A analise proposta neste texto deixa claro
que Jesus aproveitou a oportunidade posta para trazer um ensino valioso sobre a
salvação. O mestre fala aos seus discípulos que eles deveriam tirar o seu coração
do mundo e confiar que a salvação seria providenciada por Deus. De igual modo,
não há motivos históricos ou linguísticos para acreditarmos que o versículo 24
de Mateus 19 faça uma referência a qualquer coisa que não seja uma expressão
hiperbólica, dita com a finalidade de dar forte ênfase na mensagem de Jesus aos
seus discípulos sobre salvação e graça Divina.
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Sobre o autor: Jefferson Rodrigues é ministro do evangelho na
AD do Aeroporto, em Teresina-PI. Teólogo, historiador, escritor e professor de
exegese do Novo Testamento, entre outras disciplinas teológicas.
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
BARCLAY, William. Comentário bíblico de Mateus.
Disponível em: < http://www.iprichmond.com/atos> acesso em 13 de jun. de
2020.
HENDRIKSEN, William. Comentário
do Novo Testamento: Mateus. v1. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010
LOUW, Johannes P.; NIDA, Eugene A. (ed.). Léxico
grego-português do Novo Testamento baseados em domínios semânticos. São
Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
MOUNCE, William D. Léxico analítico grego do Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2017.
ROBERTSON, A.T. Comentário
de Mateus e Marcos: à luz do Novo Testamento grego. Rio de Janeiro: CPAD,
2011.
RUSCONI, Carlo. Dicionário
do grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2015.
OMANSON, Roger L. Variantes
textuais do Novo Testamento: análise e avaliação do aparato critico de “O
Novo Testamento grego”. São Paulo: SBB, 2018.
VICENT, Marvin Richardson. Estudo no vocabulário
grego do Novo Testamento. v. 1. Rio de Janeiro: CPAD, 2012.
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